UM HOMEM DA CIDADE VELHA
Rachel Berghash
Durante a Guerra da Independência os árabes capturaram a Cidade Velha de Jerusalém. Meu pai sempre sonhou em rezar no Muro das Lamentações e sempre, durante suas orações, ele ficava imaginando encontrar a fenda perfeita para colocar seu recado para D’us. Ele costumava dizer que sua fé não era tão profunda quanto a da minha mãe, ele tem algumas dúvidas. A Cidade Velha de Jerusalém é o berço da sua fé, a sua fé vacilante. Nunca consegui esclarecer se as dúvidas dele eram sobre o poder de D’us ou sobre a eficiência da prática religiosa. O mais provável é que a sua ansiedade por temer alguma catástrofe futura sobrepujasse sua fé, ele temia que o futuro pudesse ser tão sombrio quanto fora a sua infância. Durante dezenove anos, desde a Guerra da Independência em 1948 até a reconquista da Cidade Velha em 1967, meu pai esperou no limiar da Cidade Velha. Ele esperou durante dezenove anos, assim como a grama no terceiro dia da criação que, de acordo com o Midrash (um recurso para interpretar os textos bíblicos), permaneceu no limiar da terra até o sexto dia, quando o primeiro homem sentiu compaixão, fazendo a chuva cair e a grama crescer. Após esta longa separação meu pai estava ansioso para visitar os lugares que faziam parte do seu passado. Ele me levou para visitar o Monte do Templo. Com meu pai, a Cidade Velha parece aberta e acolhedora. Eu me lembro do tempo em que os portões da cidade eram fechados todas as noites e quem chegava tarde ficava do lado de fora. Antes de entrarmos na mesquita Al Aqsa mau pai e eu tiramos os sapatos, mas minha mãe fica do lado de fora, para ela é proibido entrar em locais religiosos não judaicos. As paredes interiores, adornadas com mosaicos emanam uma tranquilidade venerável, e eu fico emocionada com o silêncio que reina no local. Meu pai também me levou para visitar as escavações arqueológicas próximas do Muro. Eu posso vê-lo ali, parado, extasiado, observando atentamente como que esperando por alguma aparição surpreendente. Meu pai sempre procurou encontrar o túmulo do seu pai que teve um colapso e morreu numa rua de Istambul muitos anos atrás. Até o fim da sua vida meu pai vai tentar encontrar onde está este túmulo, mas a sua procura parece ser em vão. Ele se lembra do rosto tranquilo e da pequena barba do seu pai e tem certeza de que o verá novamente no dia da ressurreição dos mortos, quando então será um velho grisalho enquanto seu pai ainda será um jovem de trinta e seis anos. Enquanto caminhamos meu pai me mostra o bairro onde viveu quando era criança. Ele me conta que durante todo o tempo em que a cidade nova esteve separada da velha ele sonhava em visitar este bairro, tocar os túmulos onde seus ancestrais foram sepultados e que, na maioria, foram destruídos pelos árabes. Ele queria ficar próximo dos seus espíritos. Nós visitamos também o local da primeira sinagoga ashquenazi, a Hurva. Sua estrutura inacabada foi queimada por credores árabes, junto com quarenta Torás. Quando era menina, Zelda, a tataravó do meu pai, foi uma das voluntárias empenhadas em limpar o local e carregar pedras para a reconstrução da sinagoga. Uma figura lendária na Cidade Velha, Zelda era famosa por sua energia e por sua piedade. Ela animava festas de casamento e rezava as lamentações da meia-noite pela destruição do Templo, prostrando-se sobre os túmulos dos ‘tzadikim’ (homens piedosos) no cemitério do Monte das Oliveiras. O Monte das Oliveiras tem uma aura sagrada e ao mesmo tempo profana, muitos “tzadikim’ foram enterrados ali, entre eles o pai da minha mãe que foi para Jerusalém no final dos anos 1920, para lá ser enterrado, um costume que ainda é comum entre os judeus religiosos da Diáspora. Um pouco além, no Monte Sion, de acordo com a lenda, o rei David foi enterrado, o que é negado por muita gente. Quando eu era criança eu não gostava de visitar o túmulo por causa desta incerteza, me parecia tudo uma grande mentira. O entusiasmo de Zelda com a reconstrução da Hurva me faz lembrar dos exilados que voltaram da Babilônia para Eretz Israel sob a inspirada liderança de Ezra, o escriba, para reconstruir o Templo e dedicá-lo a D’us . Eu admirava Ezra, mas foi Ciro, o rei da Pérsia, que conquistou minha admiração e tornou-se meu verdadeiro herói: ele mandou os judeus de volta para a terra deles para adorar D’us no Templo. Ele foi magnânimo ao entender que as pessoas têm necessidade de religião, qualquer religião. O pai de Zelda, Mordecai Schnitzer, era um artista e veio da Polônia para Eretz Israel em 1810. Quando jovem ele estudou no Beit Midrash e, um dia, teve um sonho em que viu uma arca sagrada elaboradamente esculpida. Quando acordou ele estava inspirado, comprou ferramentas e começou a fazer a sonhada arca. Ele tornou-se escultor e pintor, restaurador e construtor de arcas, um homem que vivia só para sua arte. Ele fazia objetos de arte para visitantes ilustres, como alguns membros da realeza inglesa e da realeza austro-húngara. Entre as histórias que contam a seu respeito há uma sobre como ele escolheu a pedra que deveria esculpir para a sinagoga de Viena: ele percorreu os montes que circundam Jerusalém pulando de pedra em pedra, completamente absorto na busca, batendo em cada pedra até encontrar uma cujo som lhe agradasse. Em outra visita à Cidade Velha meu pai me apresentou aos seus antigos fregueses árabes, sentados em banquinhos na frente de suas lojas. Ele disse em árabe: “esta é a minha filha, a menininha que vocês conheceram antes de 1948”. Entramos numa papelaria, vejo um monte de canetas sobre o balcão e um forte cheiro de papel domina o local. O dono da loja e meu pai conversam amigavelmente, é como se o tempo tivesse parado e a jornada de inimizade que ambos foram forçados a empreender não tivesse acontecido. Após o passeio entramos num pequeno café árabe. Sentamos do lado de fora, o sol está forte, mas a mesa é coberta por um toldo. Meu pai pede um café, recosta-se na cadeira e acende um cigarro. Seu rosto parece relaxado, as linhas de tristeza e preocupação que estão geralmente presentes desapareceram. Ele voltou para casa. Apesar de termos ancestrais extraordinários, como Zelda e o pai dela, eu sempre achei que não havia um pedigree notável na minha genealogia. Meu pai costuma contar que nós somos descendentes de um grande rabino hassídico, Reb Shmulke de Nikolsburg, o que não me causou grande impressão até que, anos mais tarde, quando li o livro de Martin Buber sobre o hassidismo, eu fui capaz de compreender como a grandeza está próxima da simplicidade. Mas eu gostava de imaginar que pudéssemos ter alguma ligação com grandes artistas, como a atriz Hannah Rovina, com suas feições expressivas e sua voz profunda, que quando atuava no ‘Dibuk’ transcendia todas as limitações. Ou talvez com Ygal Alon, o comandante do Palmach, a força de defesa clandestina de elite durante o Mandato Britânico, que simbolizava uma geração forte que transmitia liberdade, coragem e confiança. Ou com o poeta Natan Alterman, que falava da luta nacional pela independência. Muitos dos seus poemas foram banidos pelas autoridades britânicas. Alterman costumava frequentar o Café Cassit em Tel Aviv para tomar café e conversar com seus amigos artistas; o que será que eles tanto tinham para conversar? Quando eu era adolescente eu queria que meu pai fosse diferente, eu queria que ele se vestisse melhor: sua camisa manchada e suas calças amarrotadas me aborreciam. Falei para minha mãe, mas ela disse apenas que este era o jeito dele. Será que ela não poderia fazer nada? Uma das minhas fantasias era que meu pai vinha dirigindo um carro pela nossa pequena e poeirenta rua. Não era o carro que me interessava, mas era o meu pai dirigindo, o que, aos meus olhos, transformava o pequeno e ansioso homem que ele era num homem corajoso e audacioso. De onde eu tirei esta ideia? Nenhum de seus amigos dirigia, nem mesmo Feldman, seu amigo de infância que mudou-se de Jerusalém para Petach Tikva, onde tinha um pomar. Sempre que vinha nos visitar ele falava das pedras que tinha nos rins e dos oito copos de chá que precisava tomar por dia para dissolvê-las. Ele sentava no nosso terraço e engolia um copo de chá após o outro. Eu o imaginava um herói e o consumo ininterrupto de chá reforçava esta minha ideia. Eu podia ver que meu pai também o admirava, talvez por ele ter assumido o risco de sair do bairro onde cresceu para tornar-se um agricultor. Um agricultor que enriqueceu. Às vezes meu pai falava em mudar também, ir para o campo e ter um pequeno sítio e um pomar. Meu pai queria paz de espírito e imaginava que um sítio lhe traria isto. Meu pai não realizou seu sonho, mas depois de aposentar-se ele passou a estudar o Talmud todos os dias, algo que tinha desejado fazer durante toda sua vida. Agora ele aderiu aos rituais, levanta todas as manhãs às cinco horas e vai para a sinagoga rezar. Ele costuma ajudar os necessitados, não recusa auxílio às pessoas que lhe pedem dinheiro. As responsabilidades precoces fizeram dele um homem muito preocupado, mas autônomo, decisivo. Seus conflitos, quando os têm, não são aparentes. Ainda posso ouvir seus passos rápidos e confiantes pelas ruas da Cidade Velha, partilhando comigo seu passado, o bairro onde cresceu. Meu pai é um homem de hábitos arraigados. Quando tinha a loja, ele vinha para casa todos os dias para o almoço à 1h. Vinha cansado, declarando impacientemente que estava com fome. Rapidamente, minha mãe lhe servia o almoço. Em seguida, ele fazia uma pequena sesta e, quando acordava, embora as linhas no seu rosto parecessem um pouco atenuadas, ele ainda parecia preocupado, precisava voltar para reabrir a loja às 4h. Meu pai sempre disse que não é um homem ambicioso como alguns de seus competidores, Feinstein e Cohen. Ele diz que as pessoas confiam nele, tem seus fregueses fiéis, e isto é o suficiente. Ele já teve ofertas para fazer sociedade, mas prefere ser seu próprio patrão, não se envolver com a maneira de fazer negócios das outras pessoas. Minha mãe concorda e diz que Feinstein é muito ambicioso. Ela se preocupa com a saúde do meu pai e não quer que ele trabalhe tanto quanto Feinstein e termine arruinando a sua saúde. A loja do meu pai costumava ser um ponto de encontro. Minhas amigas vinham fazer compras. Ruven, meu amigo arquiteto,, costumava aparecer e, depois de adquirir algumas coisas, gostava de conversar com meus pais (quando eu já era mais crescida minha mãe passou a ajudar meu pai na loja). Minha amiga Dina vinha, às vezes, pedir dinheiro emprestado. Juan, o cônsul espanhol em Jerusalém, que conheci no navio quando voltava de Nova York, veio uma vez para trazer um convite para uma festa (ele não podia me telefonar porque não tínhamos telefone). Meu pai disse: “que rapaz simpático, pena que não é judeu.” Meu pai diz que odeia a loja, mas nunca disse o que ele odeia na loja e quando eu lhe pergunto o que ele gostaria de fazer em vez de cuidar da loja ele diz que gostaria de cantar. Isto me faz lembrar de Ferrer, um velho cantor cubano que canta o amor e a saudade. Ele canta a fome que sentiu quando era criança, ele canta as gardênias. Não há gardênias na Cidade Velha de Jerusalém. Mas meu pai gostaria de cantar. Quando meu filho mais velho era criança, meu pai costumava ‘empregá-lo’ na loja. Meu filho ficava sorrindo ao lado da caixa registradora, entregando o troco para os fregueses. Quando eu tinha pouco mais de vinte anos, eu ia até a loja pedir dinheiro para complementar meu salário e meu pai costumava pegar algumas notas na caixa registradora, alcançá-las para mim e perguntar se eu precisava de mais. Minha mãe costumava dizer que meu pai me amava acima de qualquer outra coisa no mundo. Sempre que ele me via com um vestido novo ele dizia que ficava muito bem em mim. Algumas vezes minha mãe e eu experimentávamos o mesmo vestido e ele dizia que ficava melhor em mim. Eu me sentia constrangida com este comentário, mas minha mãe parecia não se importar, ela tinha certeza de que meu pai a amava também. Durante toda sua vida meu pai costumava contar como eu estava emaciada quando fiquei doente durante um mês, com tifo, aos três anos. Lembro de ficar sentada na palma da sua mão, de tão pequena que fiquei. Lembro que ele me levou para o terraço para tomar sol. Ele talvez tenha pensado que eu não iria sobreviver, que ele iria me perder como perdeu seu pai e seus irmãos, como sua família perdeu tudo depois que seu pai morreu em Istambul e foi enterrado sem deixar vestígios. Meu pai perdeu a sua infância. Eu fiquei só pele e ossos, mas sobrevivi, ele não me perdeu. Ele fala com tristeza e orgulho sobre o momento em que me levou para fora e como me segurou na palma da sua mão. Meu pai pergunta o que estou tocando e eu respondo que é Mozart. Ele anota dentro do armário do banheiro. Alguns dias depois ele pede para eu tocar Mozart, é muito bonito. Enquanto toco piano, meu pai me olha amorosamente, agradecendo pelo presente. Eu sou grata pelos comentários, embora escassos, e geralmente ditos meio sem jeito. Ele não parece inclinado a me apoiar, geralmente está muito ocupado com a loja e seus fregueses. Eu penso que nós podíamos ter compartilhado mais coisas, mas seu temperamento retraído o impede e eu sou orgulhosa e teimosa. Agora eu lembro seu rosto expressivo, a preocupação que demonstrou ao examinar minha perna depois que passei por uma pequena cirurgia ou o modo ansioso e sussurrado como recitou os Salmos quando fui à emergência do hospital com espasmos no estômago. Meu pai diz que tenho uma boa cabeça, eu poderia ser advogada e eu me pergunto se ele não sente falta de um filho. Ele diz que doou dinheiro para o orfanato onde passou parte da sua infância para que eles providenciem uma pessoa para dizer o kadish após a sua morte ( não é costume as filhas dizerem o kadish por seus pais). Meu pai é muito organizado, já comprou as sepulturas para ele e para minha mãe e toda a vez em que faz alguma alteração no testamento ele me mostra. Em 1988 estou em Nova York e meu pai me telefona. Sem qualquer aviso, ele começa a cantar. E canta Yah Ribon Olam Vealmaia, uma canção sacra em aramaico que se costuma cantar após o almoço no Shabat. A canção pede a D’us que volte para o Templo Sagrado em Jerusalém, para o deleite de todas as almas. Assim canta o meu pai, com sua voz suave e melódica: meu pai que gosta de música sacra, agora é um cantor. Pelo telefone, ele canta para mim. Tradução: Adelina Naiditch]]>