Meditando sobre recordações

Meditando sobre recordações

Menachem Z. Rosensaft

Existe uma coisa chamada kismet, destino. O termo em idish é bashert, algo predestinado. A foto em preto e branco mostra um homem jovem, com menos de trinta anos, parado próximo à torre de um castelo do século XIV na cidade polonesa de Bedzin. Ele usa uma camisa branca de mangas compridas e uma gravata, está sem paletó e segura um chapéu nas mãos. A foto foi feita antes da chegada dos alemães, antes que os judeus de Bedzin fossem forçados a viver num gueto, antes que as irmãs e o irmão do jovem fossem levados para Auschwitz-Birkenau onde morreram. Naquele dia o jovem não sabia que, eventualmente, ele seria deportado junto com sua esposa e filha e que escaparia do trem que se dirigia para Auschwitz pulando por uma janela e mergulhando no rio Vístula, que voltaria ao gueto apesar de ser atingido por três tiros disparados pelos alemães ou que todos os judeus daquele transporte seriam levados diretamente para as câmaras de gás. Quando posou para a foto ao lado do castelo de Bedzin ele não sabia que no final da guerra, que então não tinha sequer começado, ele teria sobrevivido a Auschwitz-Birkenau, inclusive a vários meses no notório bloco 11, conhecido como o bloco da morte, assim como ao campo de trabalhos forçados de Lagisha e aos campos de concentração de Langensalza, Dora-Mittelban e Bergen-Belsen. Tudo isso ainda estava para acontecer. image002   A própria foto sobreviveu a Auschwitz. Ela era uma entre as quase 2.400 fotos que os judeus levaram consigo quando foram deportados, desconhecendo seu destino, e que foram obrigados a entregar junto com seus pertences, suas malas, suas roupas. Nós jamais saberemos se aquela foto pertencia à esposa dele ou a uma de suas irmãs ou a um amigo. Tudo que sabemos é que as fotos foram resgatadas pelos prisioneiros e escondidas no campo para que os alemães não as queimassem. Durante várias décadas após a guerra elas permaneceram num depósito de um dos prédios de Auschwitz. Em 1986, Ann Weiss, filha de dois sobreviventes do Holocausto, encontrou-as quase por acaso. Dois anos depois ela voltou à Polônia e, cuidadosamente, copiou as fotos. Em 2001 muitas destas fotos foram publicadas no livro dela, “O Último Álbum, Uma Visão das Cinzas de Auschwitz-Birkenau”. O tempo passou e algumas semanas atrás eu fui convidado para um programa multimídia sobre “A Música Perdida do Holocausto”, organizado por Olívia Hilton, diretora de Projetos Especiais, dentro do Departamento de Estado, no escritório do Enviado Especial para monitorar e combater o antissemitismo. E assim, numa tarde chuvosa de junho, eu me encontrava no auditório do Departamento de Estado em Washington, DC, ouvindo as músicas que, durante muitos anos, foram coletadas pelo pianista italiano Francesco Lotoro. image003 (1)   Ira Forman, recentemente indicado para o cargo de Enviado Especial, explicou que “é difícil imaginar como alguém poderia criar algo diante da adversidade e do trauma experimentados nos campos de concentração e em toda a Europa ocupada pelos nazistas. Mas o que uma pessoa pode fazer para preservar a humanidade que lhe está sendo roubada? . . . Certa ocasião, Vitor Hugo disse: “A música expressa o que não pode ser dito sobre algo que não pode ser silenciado”. Como linguagem universal a música tem o poder de cruzar fronteiras geográficas e cronológicas para compartilhar uma história, para despertar em nós as emoções que dominavam o compositor e que, inicialmente, foram compartilhadas por um auditório completamente diferente. Bret Werb, curador da Coleção de Músicas do Museu do Holocausto dos Estados Unidos, falou eloquentemente sobre os compositores, tanto de música clássica como de música popular que, nos guetos e nos campos de concentração da Europa dominada pelos nazistas, criaram trabalhos que iluminam uma dimensão negligenciada do genocídio de seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. A atitude deles era, ao mesmo tempo, uma manifestação desafiadora de preservação da sanidade individual e da cultura coletiva diante da barbárie. Após a palestra de Werb foi exibido um filme editado com trechos de músicas de compositores como Robert Heilbut, que compôs quando esteve em Auschwitz, Buchenwald e Bergen-Belsen, e William Hillsley, um pianista e professor de música londrino que vivia na Holanda desde 1935 e que foi feito prisioneiro pelos alemães em campos de internamento de civis. Muitas das imagens do livro de Ann Weiss acompanhavam a execução de um quarteto de cordas do compositor francês Emil Goué, que passou vários anos em um campo de prisioneiros de guerra. De repente, eu vi a foto do meu pai, Josef Rosensaft, quando jovem, ao lado do castelo da sua cidade natal de Bedzin. Naquele momento eu me lembrei das palavras da canção do poeta idish Yosef Papiernikov e eu pude quase ouvir meu pai cantando com sua bela voz de tenor: Zol zayn az ich boy in der luft schlesser Zol zayn az main Got iz ingantsn nishto In troym iz mir heller, in troym iz mir besser In cholem – der himml – noch bloyer fun bloy. Em tradução livre: Pode ser que eu construa castelos no ar Pode ser que meu Deus nem exista No meu sonho tudo é mais claro, no meu sonho me sinto melhor No meu sonho o céu é mais azul que o azul. Só então eu percebi que talvez o aspecto mais importante de toda a música composta e de todos os poemas escritos durante os anos do Holocausto foi possibilitar aos compositores, aos intérpretes, aos escritores, aos ouvintes e aos leitores escaparem, nem que fosse por um momento apenas, para os sonhos em que o céu é mais azul que o azul. Eu sou profundamente grato ao Enviado Especial Ira Forman e a Olívia Hilton pelo maravilhoso presente que eles me deram, ver meu pai na tela do auditório do Departamento de Estado 38 anos após a sua morte, como ele era antes do Holocausto.   Artigo de Menachem Z. Rosensaft, conselheiro do WJC, anteriormente publicado no On Faith, blog do jornal Washington Post e citado no WJC – World Jewish Congress em 26 de junho de 2013. Tradução: Adelina Naiditch]]>

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