Transferindo a memória: a tarefa dos filhos e netos dos sobreviventes do Holocausto

Transferindo a memória: a tarefa dos filhos e netos dos sobreviventes do Holocausto

18/08/2011 Muitos, senão a maioria, dos filhos e netos de sobreviventes do Holocausto vivem com fantasmas. Nós somos assombrados assim como um cemitério é assombrado. Nós temos dentro de nós sombras e ecos de uma morte angustiada que nunca experimentamos ou testemunhamos. Um dos meus fantasmas é um menininho chamado Benjamin que chegou ao campo da morte de Auschwitz-Birkenau com seus pais 67 anos atrás, na noite de 3 para 4 de agosto de 1943. Em suas memórias, publicadas postumamente, minha mãe, Dra. Hadassah Rosensaft, lembrou seus momentos finais com seu filho, meu irmão: “Nós éramos vigiados por homens e mulheres das SS. Um dos homens das SS parou na frente das pessoas e começou a seleção, com um único movimento do seu dedo ele enviava algumas pessoas para a direita e algumas para a esquerda… Os homens eram separados das mulheres. Pessoas com crianças eram enviadas para um lado, jovens eram separados dos mais velhos. Não era permitido passar de um grupo para o outro. Nosso filho de cinco anos e meio foi com o pai. Um fato que aconteceu durante aqueles primeiros momentos me atormentará até o fim dos meus dias. Quando fomos separados meu filho virou-se para mim e perguntou: Mamãe, nós vamos morrer?    Eu não pude responder à sua pergunta”. Benjamin é uma entre mais de um milhão de crianças judias mortas durante o Holocausto. Desde a morte da minha mãe em 1997 ele vive dentro de mim. Eu vejo seu rosto, tento imaginar a sua voz, o seu pavor quando as portas das câmaras de gás foram fechadas, suas lágrimas finais. Se eu o esquecer, ele desaparecerá. A preservação e a transferência da memória é a missão mais crítica que os filhos e netos dos sobreviventes devem assumir para garantir para as futuras gerações uma lembrança significativa e autêntica do Holocausto. Na medida em que diminui o número de sobreviventes esta tarefa se torna mais urgente. Nós que tivemos pais que sobreviveram ao Holocausto acreditávamos que eles eram indestrutíveis. Afinal, eles venceram os esforços alemães para matá-los, sobreviveram aos guetos e campos de morte e reconstruíram suas vidas após a guerra. Tinham um gosto especial pela vida. Aos nossos olhos eles eram realmente parte de uma geração especial. Parecia que nossos pais estariam aqui para sempre, que sempre nos protegeriam. Mas a idade e a fragilidade do corpo humano são inexoráveis. Logo as vozes daqueles que sofreram ao lado dos mortos vítimas do Holocausto não serão mais ouvidas. Muitos filhos e filhas de sobreviventes já perderam um ou ambos os pais. Meu pai, o bravo líder dos sobreviventes de Bergen-Belsen morreu em 1975 aos 64 anos. Minha mãe, uma das fundadoras do Memorial do Holocausto em Washington, morreu 22 anos mais tarde. A maioria dos sobreviventes tem hoje cerca de 80 anos, muitos estão com a saúde debilitada. A responsabilidade principal pela transmissão da lembrança dos sobreviventes para o futuro passou agora para seus filhos e netos. Elie Wiesel em sua mensagem na Primeira Conferência Internacional de Filhos de Sobreviventes do Holocausto em 1984 nos mandou fazer o que os sobreviventes tentaram fazer, e mais – manter nossa história viva e sagrada. Cabe a nós integrar as memórias, o espírito e a perseverança de nossos pais e avós na consciência coletiva da comunidade judaica e do mundo. Isto não significa que a transmissão, ou transferência se preferirem, da memória deva ser nossa única prioridade. Nossa identidade nos impõe outras obrigações também. Nós devemos fazer o possível para que os sobreviventes possam viver seus últimos dias com dignidade. Dezenas de milhares deles vivem uma existência precária. Cerca de 25% dos sobreviventes nos Estados Unidos e uma percentagem ainda maior em Israel vive no nível de pobreza ou abaixo dele. Frequentemente forçados a decidir entre usar seus parcos recursos para comprar comida ou remédios, entre aquecer suas casas ou consertar seus óculos, eles precisam urgentemente de muito mais assistência do que suas minguadas pensões, que muitos, mas nem todos, recebem pela lei das reparações da Alemanha. Nós também temos a responsabilidade moral de não ficar parados, como na famosa canção de Mordechai Gebirtig, “Es Brent” (está queimando), “mit ferleygte hent” ( com os braços cruzados), enquanto seres humanos em qualquer parte do mundo são oprimidos ou perseguidos. Nós não temos o direito de criticar o mundo por não ter vindo em auxílio aos nossos pais e avós nos anos 1930 e 1940 a não ser que façamos todo o possível para enfrentar todas as formas de ódio étnico, religioso ou racial contemporâneo e para prevenir os genocídios, seja em Darfur, Ruanda, na antiga Iugoslávia, ou em qualquer outro lugar. Se o cataclismo chamado Holocausto nos ensinou apenas uma lição, esta deve ser que a consequência final do silêncio e da indiferença pela situação trágica dos outros foi personificada para sempre nas chamas de Auschwitz e nas covas coletivas de Bergen-Belsen. Cinco meses apenas após o término da Segunda Guerra Mundial, diante dos esforços do governo britânico de limitar a imigração judaica para a Palestina, os sobreviventes que estavam nos campos de pessoas deslocadas (DP) da Alemanha e da Áustria exigiram o direito de reconstruir suas vidas numa pátria judaica, um estado judeu. Em setembro de 1945, os delegados ao Primeiro Congresso de Judeus Liberados na zona britânica da Alemanha que meu pai, Joseph Rosensaft, organizou no campo DP de Bergen-Belsen, mais conhecido simplesmente como Belsen, adotou formalmente uma resolução pedindo o estabelecimento de um estado judeu na Palestina e expressou sua “tristeza e indignação pelo fato de que quase seis meses após a liberação nós ainda nos encontramos em campos vigiados em solo britânico encharcado com o sangue do nosso povo. Nós afirmamos que não seremos levados de volta para os países que se tornaram a sepultura do nosso povo”. Pouco tempo depois meu pai, diretor da Comissão Central dos Judeus Liberados da Zona Britânica da Alemanha e da Comissão Judaica que administrava o campo DP Belsen, atacou publicamente os esforços das autoridades britânicas para reprimir os sentimentos sionistas dos sobreviventes. De acordo com uma entrevista publicada no New York Times na qual meu pai denunciava as condições de vida em Belsen: “As atividades nacionalistas e sionistas judaicas são desencorajadas, declarou o Dr. (sic) Rosensaft, acusando as autoridades britânicas de exercerem censura sobre publicações dos internos, não permitindo que os judeus proclamem por escrito seu desejo de emigrar para a Palestina. Em dezembro de 1945 meu pai foi convidado para viajar para os Estados Unidos para falar na Primeira Conferência Pós-Guerra do United Jewish Appeal em Atlantic City. Naquela ocasião ele declarou: “A Palestina é o único lugar do mundo que deseja, pode e está pronto para abrir suas portas para os judeus destituídos e alquebrados da Europa destruída pela guerra”. Testemunhando perante a Comissão de Inquérito Anglo-Americana para a Palestina no início de 1946 ele disse aos seus membros que se os sobreviventes não puderem entrar na Palestina “nós voltaremos para Belsen, Dachau, Buchenwald e Auschwitz, e vocês serão moralmente responsáveis por isto”. Não é de surpreender, portanto, que a dedicação dos sobreviventes ao sonho sionista que os tinha fortalecido nos guetos e nos campos de morte tenha imbuído na maioria dos seus filhos e netos um compromisso intuitivo e poderoso pela permanência e segurança duradoura do Estado de Israel. A emergência de Israel como um porto seguro para os judeus sem lar foi um dos primeiros raios de luz a penetrar na escuridão do luto e do desespero após o Holocausto. Em abril de 1946, quando minha mãe escoltou mil órfãos judeus para a Palestina, ela acreditava fervorosamente que eles e seus filhos e netos estariam seguros para sempre. Para nós, no entanto, as atuais ameaças de destruição feitas pelo presidente iraniano Mahmud Ahmadinejad e seus seguidores, os líderes do Hamas e do Hezbolá, transcendem a retórica política. Nós crescemos tendo Israel não apenas como elemento central da nossa consciência judaica, mas com uma convicção muito real de que a ausência de uma pátria judaica, ou um porto seguro para os judeus perseguidos durante os anos de 1930 e 1940, contribuiu para a morte das nossas famílias. Os filhos e filhas dos sobreviventes não pertencem a nenhum estereótipo. Encontramos entre nós ativistas da lembrança do Holocausto tais como Rositta Kenigsberg, vice-presidente executiva do Centro de Educação e Documentação do Holocausto em Hollywood, Florida; Dra. Romana Strochlitz Primus, presidente da Federação Judaica do Leste, de Connecticut e Dr. Joel M. Geiderman, co-diretor do Departamento de Emergência do Centro Médico Cedars Sinai em Los Angeles, com quem eu tive o privilégio de trabalhar no Conselho do Memorial do Holocausto dos Estados Unidos; Hannah Rosenthal, a enviada especial do Departamento de Estado dos Estados Unidos para Monitorar e Combater o Antissemitismo; a psicóloga Eva Fogelman, pioneira na formação de grupos de apoio para filhos de sobreviventes nos anos 1970. Nossas fileiras incluem também Helen Epstein, autora do livro Filhos do Holocausto: Conversas com filhos e filhas de sobreviventes; o ex-diretor executivo do Congresso Judaico Mundial, Élan Steinberg, o estrategista por trás do exitoso esforço para cobrar 1.25 bilhões de dólares deixados por judeus em bancos suíços; tenente-general Benny Gratz, chefe do Estado Maior do Exército de Israel: Helena Glaser, presidente da WIZO Internacional e diretora do Conselho Geral da Organização sionista Mundial. Minha esposa, Jean Bloch Rosensaft, historiadora de arte e diretora de museu que foi curadora de numerosas exposições de arte de sobreviventes e filhos de sobreviventes, assim como uma exposição internacional de fotos sobre o campo DP Belsen; a psicóloga clínica israelense Yaffa Singer, uma autoridade mundialmente reconhecida em stress pós-traumático em militares tanto da ativa como veteranos; as novelistas Lily Brett, Thane Rosenbaum e Melvin Jules Bukiet; o artista gráfico Art Spiegelman, vencedor do Prêmio Pulitzer; o rabino Marc Schneier, vice-presidente do Congresso Judaico Mundial, que promove a compreensão entre judeus e muçulmanos; o âncora da CNN Wolf Blitzer; Thomas Feyer, editor de cartas do New York Times, e o repórter Joseph Berger, do New York Times; Vivian Bernstein, co-diretora da Unidade de Programas de Grupo do Departamento de Informação Pública da ONU; Ilan Ramon, o astronauta israelense que morreu tragicamente em primeiro de fevereiro de 2003 quando a nave espacial Colúmbia se desintegrou na volta à terra, dezesseis minutos antes da aterrissagem programada; Jerzy Warman, nascido na Polônia e ativista nos Estados Unidos durante os anos 1980 e início dos anos 1990 a favor do movimento Solidariedade, da Polônia; a historiadora de cinema Annette Insdorf e os cineastas de documentários Jeffrey Tuchman e Aviva Kempner; a atriz Blanche Baker que conquistou um prêmio Emy por sua interpretação de Anna Weiss na minissérie de TV Holocausto; Michael Korenblit, co-fundador da Fundação Respeito à Diversidade, que ensina tolerância aos estudantes de Oklahoma; David Harris, vice-presidente executivo da Comissão Judaica Americana; o empreiteiro e filantropo Leonard Wilf; Serena Woolrich, fundadora do Allgenerations, um site de informações para sobreviventes e suas famílias; arquiteto Daniel Libeskind; o cantor israelense Yehuda Poliker que compôs o rock balada clássico Esta é a Estação Treblinka, para citar só alguns. É claro que nem todos os filhos e netos de sobreviventes ou de refugiados da perseguição nazista se identificam como tal. Mesmo sendo filho de um refugiado judeu-alemão, Billy Joel, por exemplo, nunca, que eu saiba, fez qualquer tentativa de perpetuar ou mesmo reconhecer a memória do Holocausto em seus versos. Sua única canção de “consciência social” We Didn’t Start the Fire ( nós não começamos o incêndio) coloca Eichman entre Hemingway e a novela de ficção científica Estranho em Uma Terra Estranha, entre as personalidades e eventos que Joel vê como símbolos da segunda metade do século XX. É verdade que nós não somos mais homogêneos que nossos pais ou avós foram. Os judeus europeus arrebatados pelo Holocausto cobriam desde os mais fervorosos observantes ao mais exaltado secular, dos idishistas e hebraístas àqueles que mal reconheciam suas raízes judaicas. Nos barracões apinhados de Auschwitz, Treblinka e Bergen-Belsen, os antigos ricos dormiam ao lado dos mais pobres e de outros de todas as camadas sociais. Os médicos das SS que faziam as seleções para as câmaras de gás não faziam diferença entre judeus intelectuais e operários, entre rabinos e comerciantes ou entre advogados e ladrões. Os filhos e netos dos sobreviventes são igualmente diferentes. A única coisa que temos em comum é que nossos pais passaram pelo Holocausto, mas este fato é suficiente para nos reconhecermos instintivamente e compreendermos uns aos outros. No entanto, nós também nos subdividimos. Aqueles de nós que nasceram nos campos DP logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial têm uma afinidade intuitiva. Como nossos pais e avós, nós nos comunicamos com linguagem própria. Não faz muito tempo eu encontrei Solomon Grinspan, presidente de um conhecido clube de golfe em Nova York e descobrimos que compartilhávamos um passado comum. “Eu nasci em Fochrenwald, um campo DP na zona americana”. “Bergen-Belsen”, respondi. Não havia necessidade de mais informações. Nós conhecíamos a história um do outro sem precisar dizer mais palavras. Temos também os filhos e netos de partisans cujos lares eram diferentes daqueles dos sobreviventes dos campos ou dos judeus que passaram os anos da guerra na Sibéria ou dos refugiados pré-guerra da Alemanha nazista. Não é necessário dizer que os judeus poloneses são culturalmente diferentes dos judeus alemães (conhecidos como yekes pelos judeus do leste europeu), e estes, por sua vez, tem pouco em comum com os sobreviventes húngaros. E quando um antigo interno de campo casa com alguém que ficou escondido ou sobreviveu com papéis falsos, a dinâmica muda novamente. Agora, cuidado. Frequentemente os filhos dos sobreviventes são tema de estudos psicológicos que tentam dissecar nossa suposta patologia, trauma, complexos de culpa, idiossincrasias coletivas e outras supostas características comuns. Estas teses são muitas vezes distorcidas e devem ser lidas (ou ouvidas) com muita cautela. Geralmente suas conclusões são baseadas em grupos de controle formados por indivíduos que procuram aconselhamento ou tratamento com um terapeuta ou outro profissional de saúde mental. É como se fôssemos extrapolar os hábitos de consumo de bebida de todos os adultos americanos a partir de entrevistas com membros dos Alcoólicos Anônimos. Não quero sugerir que todos os filhos de sobreviventes estejam livres de problemas emocionais. Existem aqueles que conseguem chegar a bons termos com as experiências de seus pais e aqueles que cresceram em lares onde a imagem negra do Holocausto era dominante. Ao mesmo tempo eu creio que a maioria de nós vê seus pais e avós como modelos de conduta e como fonte de força. Como Elie Wiesel disse em 1984 na Primeira Conferência Internacional de Filhos de Sobreviventes do Holocausto: “ A grande maioria de vocês é sadia e generosa, com senso de humor, sabem apreciar a literatura, a cultura e a humanidade. Parece quase uma anomalia vocês serem tão bem ajustados. Pela lógica, a maioria de vocês deveria ter ido parar no sofá do analista, ou noutro lugar. O fato é que vocês conseguiram canalizar sua tristeza, sua raiva, suas memórias herdadas, em realizações humanísticas em áreas tais como medicina, direito, ação social, educação e filantropia. Em outras palavras, vocês são realmente filhos dignos de seus pais. Enquanto cada um de nós chegou a termos com a nossa identidade única como filhos e netos de sobreviventes de uma maneira individual, muitas vezes multifacetada, juntos nós temos uma compreensão e sensibilidade melhor para com suas experiências. Porque nós vivemos com eles, nós os ouvimos, os observamos quando se confrontavam com seus pesadelos, na verdade nós nos tornamos suas testemunhas. Em 15 de abril de 1945, quando as tropas britânicas entraram no campo de concentração nazista de Bergen-Belsen, próximo a cidade alemã de Hanover, elas descobriram mais de dez mil corpos espalhados pelo campo e cerca de cinqüenta e oito mil internos sobreviventes, a maioria deles judeus que sofriam de uma combinação de tifo, tuberculose, disenteria, desnutrição, e numerosas outras doenças virulentas. A maioria estava tão fraca que não conseguia andar. “A mão de Adonai estava sobre mim”, declarou o profeta Ezequiel. “Eu fui levado para o vale pelo espírito de Adonai. O vale estava cheio de ossos muito secos e espalhados e Ele me conduziu em volta destes ossos e disse para mim: filho do homem, estes ossos poderão viver novamente?  E eu respondi: ó Senhor, Adonai, somente Tu sabes. E Ele me disse: Profetize para estes ossos e diga para eles: ó ossos secos, ouvi as palavras de Adonai, pois assim falou o Senhor, Adonai:  meu sopro vos tocará e vivereis novamente”. Numa palestra em que descreveu as condições de Bergen-Belsen quando o campo foi liberado, o tenente-coronel M.W. Gonin, comandante da 11ª unidade de ambulâncias durante a liberação do campo disse que havia “pelo menos vinte mil doentes que sofriam das mais virulentas doenças conhecidas, todos necessitando tratamento hospitalar urgente e trinta mil homens e mulheres que poderiam morrer se não fossem tratados, mas que certamente morreriam se não fossem alimentados e removidos do campo de horror. Não tínhamos enfermeiras, nem médicos ou leitos, roupas, remédios, ataduras, termômetros ou qualquer outro objeto essencial para o tratamento médico e, o pior de tudo, nenhuma linguagem comum. Poucos dias após a liberação, o brigadeiro H.L.Glyn-Hughes, co-diretor dos Serviços Médicos do Exército Britânico no Reno, indicou minha mãe, uma dentista judia de Sosnowiec, Polônia, 33 anos incompletos, e que tinha estudado medicina na França, para organizar e dirigir um grupo de médicos e enfermeiras entre os sobreviventes para ajudar a cuidar dos doentes em estado crítico no campo. Os pais e o primeiro marido de minha mãe foram mortos nas câmaras de gás de Auschwitz-Birkenau junto com seu filho Benjamin, e ela própria havia passado 15 meses lá antes de ser enviada para Belsen em novembro de 1944. Durante muitas semanas minha mãe e seu grupo de 28 médicos e 620 voluntários, tanto homens como mulheres, dos quais apenas uns poucos tinham algum treinamento como enfermeiros, trabalharam dia e noite com os médicos militares tentando salvar tantos sobreviventes quanto possível. Apesar de seus esforços desesperados – foi somente após 11 de maio de 1945 que a média diária de mortes caiu abaixo de 100 – o Holocausto ainda levou mais 13.944 vítimas durante os dois meses seguintes à liberação. Ezequiel continuou: “ e Ele disse para mim, ó filho do homem, estes ossos são toda a casa de Israel e eles falam: nós estamos secos, nossa esperança foi embora, estamos condenados. Profetiza, portanto, e diga para eles que assim falou o Senhor Adonai: abrirei suas sepulturas e os tirarei de lá, ó meu povo, e os levarei para a Terra de Israel… vós recebereis o meu sopro e viverão novamente e Eu os estabelecerei na vossa própria terra”. Esta intersecção de história e profecia bíblica ajuda a definir quem somos. O fim da guerra encontrou os sobreviventes sozinhos, abandonados, forçados a enfrentar uma triste realidade. Como minha mãe lembrou muitos anos mais tarde: “ para a maioria dos judeus libertados em Bergen-Belsen não havia alegria na libertação. Nós tínhamos perdido nossas famílias, nossos lares. Não tínhamos para onde ir, ninguém para abraçar, ninguém esperava por nós em parte alguma. Nós fomos libertados da morte e do medo da morte, mas não estávamos livres do medo de viver”. Um dos aspectos mais incompreensíveis da sobrevivência de nossos pais e avós era a sua força interior, a habilidade da maioria para enfrentar o futuro. Eles compreendiam intuitivamente que não podiam entregar-se à angústia ou ao desespero. Minha amiga, Romana Primus, que também nasceu o campo DP Belsen, conta como o seu pai, Sigmund Strochlitz, logo após a libertação, tomou emprestada uma motocicleta e levou sua mãe para passear. Eles rodaram sem destino, por pura alegria, para comemorar sua liberdade. E assim, fé e romance puderam florescer novamente após os guetos, as câmaras de gás, os crematórios e as covas coletivas, sem ilusões. Meus pais se conheceram poucas semanas após a liberação e se apaixonaram, mas não casaram senão um ano mais tarde. Era muito cedo, suas feridas ainda estavam abertas, muito cruas. No final da primavera e início do verão de 1945, sempre que os sobreviventes do campo DP Belsen diziam ao meu pai que queriam casar, ele os aconselhava a esperar. “Por que vocês não vivem juntos por algum tempo para ver se têm realmente alguma coisa em comum para construir um futuro juntos, para criar uma nova família, ou se vocês estão apenas procurando companhia, algum calor para abrandar a solidão”. Minha mãe morreu em 1997, poucas horas após o final de Rosh Hashaná. Seis meses mais tarde levei minha filha Jodi, então no segundo ano da universidade, para a Polônia pela primeira vez. Ela tinha passado muito tempo com minha mãe, eram muito próximas. Nós fomos a Varsóvia e Cracóvia e depois para Auschwitz. Era um dia cinzento, com uma garoa constante. Eu mostrei a Jodi o bloco 11, o bloco onde meu pai foi torturado durante vários meses, e depois fomos a Birkenau. Caminhamos em silêncio entre as barracas envelhecidas. Depois de 15 ou 20 minutos Jodi virou-se para mim e disse: “Sabe, é exatamente como Dassah, (era assim que ela chamava minha mãe, Hadassah) descreveu”. Eu percebi que tinha acontecido uma transferência de memória. Minha filha, nascida 33 anos após o Holocausto, tinha reconhecido Birkenau através dos olhos da minha mãe, através das memórias da minha mãe que Jodi tinha absorvido. No ano seguinte, em junho de 1999, Azi Schwartz, um israelense de 17 anos, parou diante do bloco 24 em Birkenau e abriu uma carta que lhe fora dada por sua avó, antiga deportada da cidade eslovaca de Dunaszerdahely em julho de 1944. Ela escreveu: “Você viu minhas lindas tranças negras ? Os tefilim do meu pai ? A peruca da minha mãe ? Você viu seus sapatos ? Nós chegamos em Auschwitz no último transporte. Minhas feridas nunca cicatrizarão. Agora você sabe porque eu choro frequentemente, especialmente nas noites de sexta-feira e nos feriados. Eu tinha 15 anos quando minha vida mudou”. No Seder de Pessach nós recitamos, Bechol dor vador chayav adam lir’ot et atzmo ke ilu hu yatza mi-mitzrzyim – em cada geração cada um de nós deve sentir-se como se tivesse ele próprio saído do Egito. Nós recebemos uma herança frágil e preciosa. No pós-Holocausto, cada um de nós, e nossos filhos e os filhos dos nossos filhos, também deve sentir-se como se tivesse saído de Auschwitz e Belsen e de todos os outros campos e guetos, das florestas e dos esconderijos secretos da Europa nazista. E para isto, nós, nossos filhos e os filhos dos nossos filhos devemos descobrir o passado mergulhando nas memórias de nossos pais e avós até que se tornem uma parte de nós. Azi Schwartz, agora chazan da sinagoga de Park Avenue em Manhattan, tem plena consciência da sua identidade como neto de sobreviventes do Holocausto. Sempre que faz as orações, e especialmente quando evoca a memória das vítimas da Shoah no El Maleh Rachamim, ele recorda“ a carta que minha avó me deu com instruções para abrir e ler diante da sua barraca em Auschwitz. Eu vejo o número tatuado no braço do meu avô, eu lembro todos os compositores e cantores mortos, todas as melodias que foram destruídas. Eu ouço também o som das sirenes durante os ataques aéreos. Eu penso no meu pai que foi ferido ao escapar de um tanque em chamas durante a Guerra do Yom Kipur. Eu sinto as lágrimas da mãe de um amigo que morreu defendendo o Estado de Israel”. Na verdade, nós somos a ponte entre dois mundos. Meus netos gêmeos têm quase dois anos e meio. Algum dia eu falarei de Benjamin para eles para que ele se torne uma presença duradoura em suas vidas. E minha esposa Jeanie falará de seu avô Joshua Bloch que foi morto pelos alemães em 2 de agosto de 1941, junto com outros líderes da comunidade judaica da cidade de Ivie, na Bielorrússia. Outros farão o mesmo por seus avós, bisavós, irmãos, tios e tias que morreram nas câmaras de gás ou morreram de fome num gueto, ou sucumbiram ao tifo num campo de concentração, ou foram traídos por seus vizinhos cristãos. Nós, que somos assombrados pelo passado, devemos agora transmitir nosso legado fantasmagórico. Autor – Menachem Z. Rosensaft Fonte – World Jewish Congress Tradução – Adelina Naiditch]]>

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